Boletim do Coletivo Feminista - Março/2009








130 anos da abertura do ensino superior
brasileiro às mulheres





A fundação das primeiras universidades no mundo datam da Idade Média. Mas a permissão para o ingresso de mulheres nessas instituições é um evento bem mais recente. Muitos são os que acham que só barreiras sociais (preconceitos, baixo nível de escolaridade, etc) impediam esse acesso. Entretanto, havia mecanismos legais que proibiam as mulheres de freqüentarem cursos superiores. Suíça e França foram pioneiras na abolição dessa proibição em 1860. No Brasil somente em 1879 as universidades foram autorizadas a receber mulheres como discentes (Decreto n. 7247 de 19 de abril de 1879- Reforma Carlos Leôncio de Carvalho) [Se considerarmos uma geração como 30 anos, são apenas quatro gerações de mulheres!] Mas a conquista desse direito foi resultado de anos de lutas e embates sobre o papel da mulher na sociedade.
A luta por acesso à educação (não só superior) foi uma importante bandeira de feministas no século XIX. No Brasil, uma feminista pioneira, Nísia Floresta, defendia já na década de 1850 . Em 1827 a educação pública destinada às mulheres foi regulamentada mas somente para nível elementar. Longa seria a batalha para conquistar acesso ao que hoje chamamos ensino médio. Mas é preciso ressaltar que poucos eram os brasileiros que tinham acesso mesmo aos níveis mais básicos de escolaridade, exclusão que ficava ainda maior entre mulheres e negros. Em 1872, por exemplo, 11% das mulheres eram alfabetizadas (20% dos homens o eram), cinqüenta anos depois, 20% das mulheres brasileiras eram capazes de ler. Mas mesmo essas recebiam uma educação diferenciada. O currículo das escolas para meninos e para meninas eram distintos e se baseavam no papel que a sociedade considerava apropriado para os diferentes sexos. Preparavam assim as meninas para as atividades de mãe e esposa e os meninos para atuarem na esfera pública.
Percebe-se, portanto, que para além da proibição legal, muitas eram as dificuldades enfrentadas por aquelas que se aventurassem a desejar cursar ensino superior. A primeira médica brasileira, Maria Estrela, teve que se mudar para os Estados Unidos para conseguir realizar seu sonho de formar-se em medicina. Maria Estrela ajudou a abrir caminho para a discussão sobre acesso das mulheres em tal nível de ensino. Em 1878 o pai de Josefa Aguededa de Oliveira enviou ao legislativo provincial de Pernambuco uma petição para enviar sua filha ao exterior para estudar medicina. A isso se seguiu um acalorado debate sobre as capacidades das mulheres para atividades científicas. O pedido foi rejeitado mas por fim recebeu ajuda financeira de vários indivíduos. Nos EUA ambas as estudantes escreveriam um jornal, A Mulher, defendendo a educação superior para mulheres:
“[Somos] duas brasileiras que abandonando a Pátria, que separando-nos do seio das caras famílias, fizemos o grande sacrifício de vir estudar medicina, no intuito de ser úteis ao nosso país, e de servir a humanidade aflita.” (HANNER, 2000: 142)
Nas páginas dos primeiros jornais brasileiros defensores da emancipação feminina no século XIX muitos eram os apelos por acesso aos níveis secundário e superior e uma educação de melhor qualidade, que não se restringisse ao ensino de leitura e afazeres domésticos. Em 1875 Francisca Diniz no jornal O sexo feminino...
“É tempo de reparardes a injustiça que nos haveis feito, conservando-nos trancadas todas as portas dos estabelecimentos de ensino superior. Ouvi-nos! Temos até aqui sofrido resignadas toda a sorte de humilhações e de injustiças. Agora, porém, que a taça transbordou, ousamos levantar nossas débeis vozes pedindo-vos, repitamos – reparação dos vossos erros e de vossas injustiças.”
Muitas seriam as batalhas para que as portas dessas instituições se abrissem. As discussões sobre o fim da proibição foram marcadas por um intenso debate. As idéias sobre a inferioridade intelectual feminina foram frequentemente utilizadas para se posicionar contra essa proposta. Outro argumento era sobre a função da mulher, que deveria se dedicar aos filhos e maridos, não cabendo exercer uma profissão (apesar de muitas das mulheres das classes populares trabalharem). Críticas à co-educação (homens e mulheres numa mesma sala), que pretensamente levaria a uma promiscuidade sexual, também foram usadas. Mesmo depois de 1879, com a abertura das universidades para mulheres, apenas um pequeno número conseguiu ter acesso. Pressões e desaprovações sociais, poucas mulheres com nível secundário de ensino eram algumas das dificuldades. Depois de entrar, haveriam outras. Elas tinham que ser acompanhadas por um homem para poderem freqüentar as salas e sentarem-se em cadeiras separadas dos homens pois a convivência entre os sexos eram algo considerado nocivo.
Somente em 1887 o Brasil teria sua primeira mulher formada em nível superior, a médica Rita Lobato Velhos Lopes. A ela se seguiram algumas outras mulheres mas não muitas. Para se ter uma idéia, entre 1890 e 1950 a Faculdade de Medicina da Bahia, pro exemplo, formou 3979 homens e apenas 117 mulheres.
Muitos anos se passariam antes que a entrada das mulheres nas universidades deixasse de ser uma exceção. O grande salto ocorreu entre as décadas de 1950 e 1970, quando a matrícula no nível superior aumentou de 26% em 1956 para 41,5% em 1971. Isso não significa que o acesso aos diferentes cursos tenha sido igual. As mulheres se concentravam nas carreiras consideradas apropriadas às mulheres tais como Letras, Pedagogia, Psicologia, História e Geografia.

E hoje?
Já se passaram 130 anos. O que mudou desde lá? Muita coisa, certamente. Hoje a presença das mulheres nas universidades do país já supera a dos homens. Entretanto, a distribuição entre os cursos está longe de ser igual. Infelizmente velhos preconceitos (atualizados cotidianamente) sobre o papel da mulher e sobre suas capacidades continuam norteando as escolhas profissionais de homens e mulheres. No século XIX muitos procuravam explicar as diferentes habilidades e menor intelegencia de negros e mulheres através da medição do cérebro. Hoje algumas pesquisas procuram fazer o mesmo com as mulheres através da genética.Na Unicamp, 59,4% dos matriculados em 1998 eram homens e 40,6% mulheres. Nos últimos dez anos deu-se um aumento no número de mulheres. 55,2% dos matriculados no ano de 2008 eram homens e 44,8% mulheres. Na USP também há uma ligeira maioria de homens. Dados de 2000 mostram que 57% dos alunos eram homens e 43% mulheres.
Mas o que é mais espantoso é a distribuição entre os cursos. Se existe de fato carreiras procuradas por homens e mulheres em proporção semelhante, outros cursos são verdadeiros guetos masculinos e femininos. Engenharia da computação teve entre os matriculados em 2008, 97,8% de homens (a mesma porcentagem de 1998), 94% dos matriculados em Engenharia de Controle e Automação, 90% do curso de música popular e 80,5% do “Cursão”. Na Engenharia elétrica somente 12,7% dos matriculados em 2008 são mulheres, em engenharia mecânica, 10,6%. Algumas engenharias, como engenharia química tem um perfil mais equilibrado. A única engenharia que tem maioria de mulheres é engenharia de alimentos (78% dos matriculados em 2008). Provavelmente porque é uma engenharia considerada mais apropriada a mulheres.
Se alguns cursos são o “clube do bolinha”, outros parecem o “clube da luluzinha”. O curso de farmácia teve 92,5% dos matriculados mulheres, fonoaudiologia 90%, enfermagem 87,5%, dança 87,5%, pedagogia diurno 82,2% e noturno 87,2%. 80% dos matriculados em artes cênicas
Felizmente alguns cursos têm um perfil mais equilibrado tais como estudos literários, ciências sociais, química, medicina, por exemplo.
Na USP a divisão desigual também é bastante evidente. Dados de 2000 mostram que em 5 dos seus cursos, os homens são mais de 80% dos estudantes: todas as escolas de Engenharia da Capital ou de outras cidades, Matemática, Computação, Física;
Por outro lado somando as alunos de Enfermargem, Farmácia, Educação, Veterinária, Saúde Publica, Odontologia e Psicologia, 76% são mulheres.
Dados de 2000 mostram que na USP havia 3.148 professores e 1.546 professoras. Não dispomos desses dados da Unicamp.



Maternidade versus Universidade




As universidades públicas em geral não estão preparadas para receber estudantes que são mães. Na Unicamp a assistência estudantil atende algumas demandas dos estudantes com filhos, oferecendo alguns estúdios (casas na moradia estudantil para estudantes com filhos), a possibilidade de tirar licença das atividades de aula, etc. Entretanto, essa assistência está longe do ideal. O número de vagas nesses estúdios beira o ridículo e as creches ainda configuram um sonho distante para a maioria das mães que buscam assistência estudantil para manter uma vida acadêmica e sua família com o mínimo de dignidade. Além disso, as estudantes de pós-graduação não têm acesso à licença maternidade durante o período de vigência de bolsas de mestrado e doutorado. Ficam, assim, à mercê do orientador(a), podendo, inclusive, perder a bolsa.
Recentemente um outro evento veios nos surpreender trata-se de uma proposta de resolução que impede a permanência de mães com filhos maiores de 7 anos de idade na Moradia Estudantil - essas mães inclusive já não puderam participar do processo seletivo desse ano, ou seja, elas devem sair da moradia com seus filhos. Ainda não conhecemos os argumentos que justificam tamanho absurdo, mas não podemos pensar em nada além de puro descaso. O que essa proposta nos fez pensar foi que a visão da Unicamp, e não só dela, como de todas as Universidades que não garantem uma Assistência Estudantil real para seus alunos, sejam eles mães, pais ou apenas alunos que necessitam de auxílio para conseguir concluir seus estudos, carrega nas suas entrelinhas uma visão distorcida da realidade: que alunas não são mães e nem devem ser! E se o são, não é problema desta Instituição! E nós perguntamos: O aluno pesquisador deve se abster da vida e de seus direitos em razão da carreira acadêmica? Até quando conseguiremos realizar o sonho destas grandes universidades em nos tornar máquinas científicas? Façamos uma reflexão sobre os direitos das mulheres na Universidade! Estamos em um lugar que preza pelo desenvolvimento da ciência, mas afinal quem desenvolve a ciência senão as pessoas?


Na Universidade Federal de São Carlos a assistência estudantil se constitui por bolsas atividades (atividades remuneradas na universidade) e alojamento estudantil. O alojamento, contudo é constituídos por quartos coletivos, desse modo as estudantes financeiramente carentes que já tinham filhos ao entrarem na universidade e as que os tiveram no decorrer da graduação, ficavam excluídas do processo seletivo do alojamento. Diante desses casos, que não são raros, a universidade, representada por suas assistentes sociais, negavam o direito destas estudantes à moradia estudantil, havendo caso em que até mesmo a bolsa atividade fora negada a uma estudante mãe. O argumento da assistente social foi de que o caso da estudante era um caso isolado e de que a universidade não estava preparada para receber estudantes como ela.
No entanto, o caso desta estudante não era isolado e após algumas chamadas, através de cartazes pela universidade, várias estudantes se manifestaram relatando estarem em situação similar, a saber, de dificuldade financeira e sem o apoio da assistência estudantil.
Formou-se um grupo de mães (mas aberto a pais) universitárias que reivindicava o direito, já garantido pela LDB, de igualdade de acesso e permanência na universidade. A pressão exercida pelo grupo resultou na inclusão de uma nova categoria de bolsa na assistência estudantil, destinada às estudantes mães financeiramente carentes. Como não há espaço adequado para crianças no alojamento estudantil o principal objetivo da bolsa é garantir moradia, via aluguel a critério das estudantes.
A idéia que permeia todo esse problema de ordem social é a de que a mulher é naturalmente mãe, logo deve se isentar de uma vida “fora do lar” seguindo a ordem “natural” das coisas. A vida “fora do lar” seria um capricho possível no mundo contemporâneo, mas que vai contra a “ordem natural das coisas”. Logo, ou se é uma mulher de verdade, dedicada exclusivamente a sua vocação de mãe ou não. A mãe é idealizada como um ser cuja vida foi abdicada em função dos filhos é o símbolo maior do sacrifício. Como um ser assim pode ter sucesso em qualquer outro âmbito da vida que não o lar?
Creio que o problema se situa na própria concepção de mãe e mulher presente no imaginário social. Concepção ancorada em idéias acerca da natureza distinta da mulher e do homem, cuja qual, a mulher com uma profissão realiza um capricho e a vida profissional é incompatível com a maternidade idealizada, caracterizada pelo sacrifício. Reitero que essas concepções que relatei são ideais que definitivamente não correspondem à realidade da vida cotidiana de muitas das mulheres brasileiras, mas explicam muito sobre as atitudes e pensamentos que contribuem para a opressão das mulheres nessa sociedade.
Percebe-se, portanto, que, embora o número de mulheres tenha crescido substancialmente nas universidades brasileiras, as escolhas dos cursos continua norteada por papéis de gênero. Cursos que exigem tipos de raciocínio e trabalho considerados masculinos como nas áreas de exatas em geral são majoritariamente procurados por homens. Por outro lado, cursos que lidam com habilidades tidas como femininas como o cuidar, ensinar etc (ex: enfermagem, pedagogia etc) são ocupados por uma maioria de mulheres.
Há, portanto, muito a se fazer para que as meninas se sintam atraídas por áreas como física, matemática e engenharias. Há todo um processo de socialização que faz com que mulheres desenvolvam algumas habilidades e outras não. Desde pequenos, homens e mulheres já são preparados para desenvolver tipos diferentes de atividades. Os brinquedos, os incentivos familiares são fatores fundamentais nesse processo. Será necessário uma transformação muito profunda em nossa sociedade para que homens e mulheres exerçam profissões independente do seu sexo. Estaremos na luta para mudar essa realidade, por mais que os resultados sejam lentos e pouco palpáveis.



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