Aborto: ilegalidade e pobreza

No mais polêmico dos assuntos, de perspectivas que vão dos direitos humanos à religião, um dado não pode ser negado: o abortamento inseguro atinge especialmente as mulheres pobres do país onde ocorre. As mulheres com condições financeiras se submetem a uma cruel e cara indústria do aborto ilegal para garantir, minimamente, a segurança de sua saúde. Para muitas, não há essa opção e recorrem a métodos que expõem sua saúde e até suas vidas. É este o quadro que se tem da ilegalidade do aborto. E os índices de mortalidade materna por aborto são tão altos que fica difícil entender o que realmente significa uma “lei em favor da vida”. Vida de quem? A estimativa é de 1 milhão de abortos e algo entre 300 e 700 mulheres mortas por ano no Brasil. E a fórmula se repete em outros lugares com condições semelhantes: 70.000 mulheres morrem por ano no mundo, constituindo 13% da mortalidade materna dos países pobres.
Se para as alas conservadoras da política e da religião a questão é o valor da vida, o que se impõe preocupante aqui é a morte. Morte de mulheres, principalmente as mais jovens e pobres, excluídas de seus direitos sexuais e reprodutivos básicos. É em favor da vida que a ilegalidade respalda a morte dessas mulheres, é por trás dela que ocorre essa grave injustiça social, conseqüência das desigualdades econômicas e de gêneros.
À falta de recursos econômicos, uma das principais razões do abortamento inseguro, estão associadas a ausência de direitos humanos, a insalubridade e a falta de opções. A prática do aborto está diretamente relacionada à falta de acessos aos métodos contraceptivos e, principalmente, ao pouco ou nenhum controle das mulheres pobres na decisão de querer engravidar. A educação e as políticas públicas de saúde, condições que garantiriam a capacidade das mulheres em suas escolhas e decisões sexuais e reprodutivas, lhes são negadas. E é dessa forma que para muitas delas é imposta uma difícil opção: enfrentar a exclusão social ou arriscar suas vidas e sua saúde com um aborto inseguro. Num país como o Brasil, em que não é raro encontrar mulheres responsáveis por toda a renda familiar e pela criação das famílias, as conseqüências do aborto ilegal tomam dimensões ainda maiores.
Sem poder decidir sobre sua vida sexual e reprodutiva, limitada por questões culturais, desigualdade de gênero, práticas religiosas e pobreza, a falta de opção de muitas mulheres começa bem antes da exposição ao aborto inseguro. Já está presente quando não consegue dizer ‘não’ a uma relação sexual, ou quando não conhece o próprio corpo e não sabe como evitar a gravidez, ou quando sabe e não tem acesso aos métodos ou ainda quando tem acesso e não consegue negociar o uso da camisinha com o parceiro. A criminalização do aborto é um coroamento dessa situação de violência e exclusão.
A ilegalidade não diminui ou coíbe a prática do aborto. Os números estão aí e não me deixam mentir. Abortos em condições insalubres, as clínicas abusivas, os medicamentos falsificados, os chás e as ervas, os instrumentos perfuradores, a esterilidade e a morte são as conseqüências da clandestinidade do aborto. A luta pela legalização é a exigência de políticas públicas que não mais negligenciem a saúde da mulher, que não mine sua capacidade de decidir sobre sua vida sexual e reprodutiva, que ofereça condições de educação sexual, planejamento familiar e aborto seguro.

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