Resenha do livro:“Infiel – A história de uma mulher que desafiou o Islã” ,

Resenha


Fronteiras promíscuas : secularismo, religião e o corpo feminino -
A propósito de “Infiel”


Mariane Venchi[1]




“Quem nasce mulher tem que viver como mulher.”

Provérbio popular da Somália





A infiltração de dogmas religiosos em questões políticas, como nos direitos reprodutivos de mulheres e sua posição na família, parece estar na moda. Quando o Arcebispo de Canterbury, Rowan Williams, líder da Igreja Anglicana na Inglaterra, propôs em fevereiro de 2008 a formalização de certos aspectos da lei islâmica (charia) no Reino Unido, houve reações conflituosas por parte da opinião pública do país, entre elas a indignação de tablóides sensacionalistas e críticas vindas dos próprios membros das comunidades muçulmanas. Dias depois, o Arcebispo reformulou seu discurso, argumentando que não se referia às punições físicas como decapitações e o corte de mãos, mas que defendia uma “acomodação construtiva” de valores islâmicos na Inglaterra em áreas jurídicas como a lei da família e o casamento, nas quais as mulheres muçulmanas poderiam evitar as cortes laicas, priorizando as cortes islâmicas em questões como divórcio, herança e a custódia dos filhos. Houve protestos por parte de várias mulheres de origem muçulmana no país.
Enquanto isso, no Brasil, observamos a invasão insistente da Igreja em assuntos da área médica e dos direitos reprodutivos e a militância no Congresso Nacional de grupos católicos, evangélicos e espíritas contra os direitos civis de homossexuais, discriminalização do aborto etc. Não por acaso, a Campanha da Fraternidade desse ano é ”Fraternidade e defesa da vida humana”, sob o slogan tirado de um versículo da Bíblia “Escolhe, pois, a vida”, tema inspirado pela visita do Papa Bento XVI em 2007, que percorreu a América Latina reiterando sua posição contrária às pesquisas em célula-tronco, aos métodos contraceptivos, à eutanásia e, obviamente, ao aborto. Tais posições políticas obscurantistas adotadas por autoridades religiosas enfatizam a importância do papel da família (nuclear e heterossexual) na sociedade, que acha eco nas proposições de Rowan Williams e em várias autoridades islâmicas que apoiaram seu discurso conservador, no qual o Arcebispo coloca os direitos das mulheres em segundo plano, condenando as decapitações supostamente sancionadas pela charia mas, por outro lado, apoiando as leis islâmicas que desfavorecem as mulheres.
A auto-biografia recentemente publicada no Brasil, “Infiel – A história de uma mulher que desafiou o Islã” da ex-deputada holandesa de origem somali Ayaan Hirsi Ali, lança luz sobre tais questões contemporâneas referentes à luta política do feminismo frente às disputas religiosas, nacionais e à domesticidade do espaço da família - arena privada a partir da qual submergem relações de gênero e poder que se amplificam em termos ontológicos e ideológicos e permeiam todas as instâncias da sociedade civil, construindo noções de corpo feminino, a partir das quais decide-se quais sujeitos estão autorizados a intervir sobre o mesmo. Hirsi Ali inaugura sua narrativa descrevendo o brutal assassinato de seu amigo, o diretor de cinema holandês Theo Van Gogh, executado por um muçulmano radical sob a justificativa de que seu curta-metragem “Submission” era um insulto ao Islã. “Submission” fora roteirizado por Hirsi Ali em 2004, sobre a transição do estado inicial de submissão a Deus ao diálogo com a divindade, de uma perspectiva feminina. A história apresentava mulheres que erguem a cabeça e levantam os olhos para Alá com versículos do Alcorão escritos na própria pele. “Dizem-Lhe sinceramente que, se essa submissão seguir causando-lhes tanta miséria, elas serão capazes de deixar de se submeter.” (p.14)
O livro é dividido em duas partes; “Minha infância” e “Minha liberdade”, que demarcam duas temporalidades ontológicas, o interstício de sua passagem de “crente” para “descrente”. Ao longo de 17 capítulos, acompanhamos o crescimento da menina somali Ayaan Hirsi Magam em seu país em meio ao golpe militar do general Siyad Barre em 1969, a extirpação de seu clitóris segundo o costume perpetuado pelas mães e avós somalis e sancionada pelos clérigos locais, a fuga de sua família para a Arábia Saudita. Nesse país, a narradora toma contato pela primeira vez com as leis puritanas e sexualmente segregadas do berço do Islamismo, no capítulo intitulado “Brincando de pega-pega no palácio de Alá”, onde nos deparamos com descrições tragicômicas do cotidiano das mulheres na terra do Profeta Maomé. A pequena Hirsi Magam era alvo constante de preconceito na escola alcorânica que frequentava, chamada pela professora e colegas de abid, escrava negra. Um país onde até hoje mulheres não podem dirigir um carro e precisam sair acompanhadas de um parente masculino. Seu corpo era-lhe sempre um peso: “Devíamos nos purificar depois da menstruação. A feminilidade era, ao mesmo tempo, irresistivelmente desejável e essencialmente suja, e todas essas intervenções eram necessárias para merecer o regozijo de Alá.” (p.129)
Da Arábia Saudita, ela passa a infância e adolescência entre Somália e Quênia, onde entra em contato com os radicais islâmicos desse país e se torna um membro da Fraternidade Muçulmana - grupo militante de origem egípcia com ramificações em todo o mundo muçulmano – tornando-se uma muçulmana devota. Porém, ao decidir fugir de um casamento arranjado por seu pai, vê-se sozinha na Europa, passando pela fronteira entre Alemanha e Holanda e exilando-se ali, país que eventualmente adota como pátria, naturalizando-se, trabalhando e mais tarde fazendo mestrado em ciência política. Hirsi Ali, - agora adotando outro sobrenome para proteger-se de eventuais represálias de sua família - descreve a mudança gradual de seus valores islâmicos para a contestação do dogma que lhe fora ensinado, seus conflitos pessoais e metafísicos ao abandono total da fé, até tornar-se uma apóstata entre seus pares. Enquanto isso, ela procura explicar ao leitor o radicalismo religioso, as assimetrias de gênero presentes tanto na lei islâmica quanto nas atitudes cotidianas dos muçulmanos, a relação entre a prática da circuncisão feminina e a religião, a conivência dos teólogos e, por fim, os problemas do multiculturalismo.
Quando candidatou-se ao parlamento holandês, Hirsi Ali já adotara a posição política ateísta e a militância feminista, aparecendo em programas de televisão e em debates abertos, entrando em conflito com a esquerda liberal e adotando uma postura crítica dos valores islâmicos que, segundo ela, entravam em choque com a sociedade laica da Holanda e não eram compatíveis com as políticas multiculturalistas de tolerância e respeito à diferença. Ela criticava os liberais e os sistemas de governo ocidentais por legitimarem, ainda que indiretamente, certas diferenças intoleráveis, como crimes de honra e mutilação genital, que estavam acontecendo na Holanda em nome da “cultura”. Sua crítica é ousada e implacável:


A Arábia Saudita é a fonte e a quintessência do islamismo. O lugar em que se pratica a religião muçulmana na sua forma mais pura e a origem de grande parte da visão fundamentalista que, desde o meu nascimento, tem se propagado muito além de suas fronteiras. Naquele país, cada alento, cada passo que dávamos estava impregnado de conceitos de pureza e pecado, e de medo. (...) O tipo de pensamento que presenciei na Arábia Saudita e na Fraternidade Muçulmana, no Quênia e na Somália, é incompatível com os direitos humanos e os valores liberais. Preserva uma mentalidade feudal arrimada em conceitos tribais de honra e vergonha. Apóia-se no auto-engano, na hipocrisia e em padrões dúplices. Depende dos avanços tecnológicos ocidentais ao mesmo tempo que finge ignorar sua origem no pensamento ocidental. Essa mentalidade torna a transição para a modernidade muito dolorosa par todos os praticantes do Islamismo.
(...)
Nós, no ocidente, fazemos mal em prolongar desnecessariamente a dor dessa transição, alçando culturas repletas de farisaísmo e ódio à mulher à estatura de respeitáveis estilos de vida alternativos.(p.492)


Por conta de tais posturas, quando foi eleita deputada e implementou projetos de apoio às mulheres e rechaço aos valores islâmicos, Hirsi Ali criou inimigos, até que aliou-se ao projeto com Theo Van Gogh e passou a receber ameaças de morte com o lançamento do filme. Depois de seu assassinato, sua permanência na Holanda tornou-se impossível e ela exilou-se nos Estados Unidos, de onde passou a publicar seus artigos e editar seu livro. Trata-se, enfim, da biografia de uma personagem corajosa e subversiva, inimiga dos radicais islâmicos, mal-vista pelos liberais ocidentais; em suma, uma apóstata e “infiel”. E por isso mesmo, a leitura de seu livro torna-se obrigatória para aqueles que buscam aprofundar-se na questão do discurso religioso construindo o corpo feminino, seja nos dogmas cristãos ou islâmicos, ambos herdeiros da tradição patriarcal do monoteísmo abraâmico.


Ficha técnica :

HIRSI ALI, Ayaan – Infiel – a história de uma mulher que desafiou o Islã, São Paulo : Companhia das Letras, 2007, 496 p. Traduzido por : Luiz A. de Araújo. Título original : Infidel – my life, New York : Free Press, 2006.

Para mais informações sobre o tema, ver os sites :

www.cnbb.org.br

www.mulheresdeolho.org.br

www.theguardian.co.uk

[1] Pós-graduação em Antropologia Social – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Unicamp. Vinculada ao Pagu – Núcleo de Estudos de Gênero, IFCH- Unicamp.

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